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20 Poemas de Machado de Assis | Literatura Clássica em Série

 20 Poemas da Série Machado de Assis: Literatura Clássica  

1. SINHÁ

 (Num álbum – 1862)

O teu nome é como o óleo derramado.

 SALOMÃO — Cântico dos Cânticos


Nem o perfume que espira

A flor, pela tarde amena,

Nem a nota que suspira

Canto de saudade e pena

Nas brandas cordas da lira;

Nem o murmúrio da veia

Que abriu sulco pelo chão

Entre margens de alva areia,

Onde se mira e recreia

Rosa fechada em botão;


Nem o arrulho enternecido

Das pombas, nem do arvoredo

Esse amoroso arruído

Quando escuta algum segredo

Pela brisa repetido;

Nem esta saudade pura

Do canto do sabiá

Escondido na espessura,

Nada respira doçura

Como o teu nome, Sinhá! 


Machado de Assis

Crisálidas


2. EMBIRRAÇÃO

(A Machado de Assis)


A balda alexandrina é poço imenso e fundo,

Onde poetas mil, flagelo deste mundo,

Patinham sem parar, chamando lá por mim.

Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,

Da beira for do poço, extenso como ele é,

Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé

Que volte um afogado, à luz da mocidade,

A ver no mundo seco a seca realidade.


Por eles, e por mim, receio, caro amigo;

Permite o desabafo aqui, a sós contigo,

Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;

Nem vence o positivo o frívolo ideal;

Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,

E até da vã loucura a moda é prima-irmã:

Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,

Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.


Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,

Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;*

E o triste, se morreu, deixando mal escritas

Em verso alexandrino histórias infinitas,

Vai ter lá noutra vida insípido desterro,

Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;

Fechado em quarto escuro, à noite não tem luz,

E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,

Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;

Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;

Castigo alexandrino, eterna solidão,

Terá lá no desterro, em prêmio da ilusão;

Verá queimar, à noite, as rosas esfolhadas,

Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,

E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,

Verá que versos tais são galhos, não dão flores;

Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,

A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,


Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...

Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranqüila,

Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,

Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas

Que o longo verso-prosa oculta, do porvir !

Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,

Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,

Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,

Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs,

A palma cede ao metro esguio, teu algoz!”


E aspiras, vate, assim, da glória ao ideal?

Triste e funesto afã!... tentativa fatal!

Nesta sede de luz, nesta fome de amor,

 O poeta corre a estrela, à brisa, ao mar, à flor;

Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,

Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,

Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;

Ó inútil esforço! Ó é ímprobo luta!

Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,

O verso alexandrino, o impassível algoz!...


Não cantas a tristeza, e menos a ventura;

Que em vez do sabiá gemendo na espessura,

Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;

Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,

Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,

A lírica harmonia há de ir-te despertar!


Verás de novo aberta a copiosa fonte!

Da poesia verás tão lúcido o horizonte,

Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,

Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,

Da perna sacudindo o alexandrino laço,

Hás de a mão bendizer que o soube desatar.


Do precipício foge, e segue a luz secreta,

Essa estrela polar dos sonhos do poeta;

Mas, noutro verso, amigo, onde ao mago ideal

A música se ligue, o senso e a verdade;

— Num destes vai-se, a ler, da vida a imensidade,

Da sílaba primeira à sílaba final!


Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;

Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;

Se já não tenho jus ao vosso puro amor;

Se nem da salvação nutrir posso a esperança,

Quero em chamas arder, sofrer toda a provança:

— Ler verso alexandrino... Oh! isso não, Senhor!

 F. X. de Novaes 


 * Todos os grifos são do autor do poema, conforme original. 



3. MARIA DUPLESSIS7

( AL. DUMAS FILHO – 1859 )

Fiz promessa, dizendo-te que um dia
Eu iria pedir-te o meu perdão;
Era dever ir abraçar primeiro
A minha doce e última afeição.

E quando ia apagar tanta saudade
Encontrei já fechada a tua porta;
Soube que uma recente sepultura
Muda fechava a tua fronte morta.

Soube que, após um longo sofrimento,
Agravara-se a tua enfermidade;
Viva esperança que eu nutria ainda
Despedaçou cruel fatalidade.

Vi, apertado de fatais lembranças,
A escada que eu subira tão contente;
E as paredes, herdeiras do passado,
Que vem falar dos mortos ao vivente.

Subi e abri com lágrimas a porta
Que ambos abrimos a chorar um dia;
E evoquei o fantasma da ventura
Que outrora um céu de rosas nos abria

Sentei-me à mesa, onde contigo outrora
Em noites belas de verão ceava;*
Desses amores plácidos e amenos
Tudo ao meu triste coração falava.

Fui ao teu camarim, e vi-o ainda
Brilhar com o esplendor das mesmas cores;
E pousei meu olhar nas porcelanas
Onde morriam inda algumas flores...

Vi aberto o piano em que tocavas;
Tua morte o deixou mudo e vazio,
Como deixa o arbusto sem folhagem,
Passando pelo vale, o ardente estio.

Tornei a ver o teu sombrio quarto
Onde estava a saudade de outros dias...
Um raio iluminava o leito ao fundo
Onde, rosa de amor, já não dormias.

As cortinas abri que te amparavam
Da luz mortiça da manhã, querida,
Para que um raio desposasse um toque
De prazer em tua fronte adormecida.

Era ali que, depois da meia-noite,
Tanto amor nós sonhávamos outrora;
E onde até o raiar da madrugada
Ouvíamos bater – hora por hora!

Então olhavas tu a chama ativa
Correr ali no lar, como a serpente;
É que o sono fugia de teus olhos
Onde já te queimava a febre ardente.

Lembras-te agora, nesse mundo novo,
Dos gozos desta vida em que passaste?
Ouves passar, no túmulo em que dormes,
A turba dos festins que acompanhaste?

A insônia, como um verme em flor que murcha,
De contínuo essas faces desbotava;
E pronta para amores e banquetes
Conviva e cortesã te preparava.

Hoje, Maria, entre virentes flores,
Dormes em doce e plácido abandono;
A tua alma acordou mais bela e pura,
E Deus pagou-te o retardado sono.

Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.


Machado de Assis
Crisálidas

4. LÚCIA

 (Alf. de Musset —1860)

Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
      Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite, entre-fechada,
      A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
      E tínhamos quinze anos!

      Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto ! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!

Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento – na minha alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dois signos de paz e de ventura:
      Mocidade da fronte
      E primavera da alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
 E murmurou um canto.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Filha da dor, ó lânguida harmonia!
Língua que o gênio para amor criara –
E que, herdada do céu, nos deu a Itália!
Língua do coração – onde alva idéia,
— Virgem medrosa da mais leve sombra, —
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas, 
Como o do mar, da noite e das florestas!

Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nós estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça...
Pobre criança! – no teu seio acaso
Desdêmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dor ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste à campa;
Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.

Doces mistérios do singelo teto
      Onde a inocência habita;
Cantos, sonhos de amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencível,
Que à porta já de Margarida, — o Fausto
      Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos,
      Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará sob os teus dedos! 



Machado de Assis
Crisálidas


5. LUDOVINA MOUTINHO ELEGIA*

(1861)

A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada d’entre a gente.
 CAMÕES – Elegias

Se, como outrora, nas florestas virgens,
Nos fosse dado – o esquife que te encerra*
Erguer a um galho de árvore frondosa,
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
           Do clarão das estrelas.

Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa a noite, ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho;
À borda do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos;
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: — Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
           De virtudes e graças.

Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
           A urna repartiam.

Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem,
           Deixa gozar na terra.
Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura,
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
           Veio fechar seus olhos:
           Enquanto a alma abrindo
As asas rutilantes pelo espaço,
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
 No seio do infinito;
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou, — se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
O recatado asilo, — abrindo o vôo,
           Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares,
Vai buscar noutra parte guarida.

Hoje, do que era ainda a lembrança resta,
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela;
O atento ouvido inda lhe escuta os passos;
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes,
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contato respondiam.

Ah! pesava-lhe este ar da terra impura,
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
           As palmas da virtude.

Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha*
 sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra ? Tudo morre;
À sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos,
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
           O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
           Encerra de esperanças.

           Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo: e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude, — eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela, — os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nestes pobres versos
Um penhor de saudade, e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo,
Possas tu ler nas pálidas estrofes
         A tristeza do amigo.

Machado de Assis


* O autor optou por este título em suas Poesias Completas. 
* Manteve-se o travessão, tal como na edição original. 
* No original consta desfolha, na errata, esfolha: possivelmente para caber na métrica, em decassílabos. 

6. ASPIRAÇÃO

 A F. X. DE NOVAES
 (1862)

Qu’aperçois-tu, mon ame*
? Au fond, n’est-ce-pas Dieu?
Tu vais à lui . . . . . . . . . . . . . . .
 V DE LAPRADE

Sinto que há na minha alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.

Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus.
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
Neste primeiro e fundo e triste limbo do erro,
Chora a pátria celeste, o foco, o centro, a luz,
Onde o anjo da morte, ou da vida, o conduz
No dia festival do grande livramento;
Antes disso, a tristeza, o sombrio tormento,
O torvo azar, e mais, a torva solidão,

Embaciam-lhe na alma o espelho da ilusão.
O poeta chora e vê perderem-se esfolhadas
Da verde primavera as flores tão cuidadas;
Rasga, como Jesus, no caminho das dores,
Os lassos pés; o sangue umedece-lhe as flores
Mortas ali, — e a fé, a fé mãe, a fé santa,
Ao vento impuro e mau que as ilusões quebranta,
Na alma que ali se vai muitas vezes vacila...

Oh! feliz o que pode, alma alegre e tranqüila,
A esperança vivaz e as ilusões floridas,
Atravessar cantando as longas avenidas
Que levam do presente ao secreto porvir!
Feliz esse! Esse pode amar, gozar, sentir,
Viver enfim! A vida é o amor, é a paz,
É a doce ilusão e a esperança vivaz;
Não esta do poeta, esta que Deus nos pôs
Nem como inútil fardo, antes como um algoz.

O poeta busca sempre o almejado ideal...
Triste e funesto afã! tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome de amor,
O poeta corre à estrela, à brisa, ao mar, à flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estrela peregrina,
Quer–lhe o cheiro aspirar na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar,
Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento ou da voz,
Acha-se o nada, o torvo, o impassível algoz!

Onde te escondes, pois, ideal da ventura?
Em que canto da terra, em que funda espessura
Foste esconder, ó fada, o teu esquivo lar ?
Dos homens esquecido, em ermo recatado,
Que voz do coração, que lágrima, que brado
Do sono em que ora estás te virá despertar?

A esta sede de amar só Deus conhece a fonte?
Jorra ele ainda além deste fundo horizonte
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar?
Que asas nos deste, ó Deus, para transpor o espaço?
Ao ermo do desterro inda nos prende um laço:
Onde encontrar a mão que o venha desatar?

Creio que só em ti há essa luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta,
Esse alvo, esse termo, esse mago ideal;
Fonte de todo o ser e fonte da verdade,
Nós vamos para ti, e em tua imensidade
É que havemos de ter o repouso final.

É triste quando a vida, erma, como esta, passa;
E quando nos impele o sopro da desgraça
Longe de ti, ó Deus, e distante do amor !
Mas guardemos, poeta, a melhor esperança:
Sucederá a glória à salutar provança:
O que a terra não deu, dar-nos-á o Senhor ! 


Machado de Assis


7. O DILÚVIO

 ( 1863)
E caiu a chuva sobre a terra
quarenta dias e quarenta noites.
GENESIS: 7, 12

Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se um mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!

Só, como a idéia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além...
Lá vai ! Em torno angústias,
Clamores e lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela os escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo 
Da extinta humanidade
Salva-se um berço: o vínculo
Da nova criação.

Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Voltando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor. 


NOTAS DO AUTOR
 E ao som dos nossos cânticos; etc.
Estes versos são postos na boca de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do cenógrafo João Caetano, representando o dilúvio universal.



Machado de Assis 

8. ERRO


 (1860)



Vous . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Qui des combats du coeur n’aimez que la victoire

Et qui revëz d’amour, comme on rève de glore,*
 L’oeil fier et non voilé des pleurs. . . . . .
 GEORGE FARCY


Erro é teu. Amei-te um dia Com esse amor passageiro Que nasce na fantasia E não chega ao coração;Nem foi amor, foi apenas Uma ligeira impressão;Um querer indiferente,Em tua presença vivo,Nulo se estavas ausente.E se ora me vês esquivo,Se, como outrora, não vês Meus incensos de poeta Ir eu queimar a teus pés,É que, — como obra de um dia,Passou-me essa fantasia.

Para eu amar-te devias Outra ser e não como eras.Tuas frívolas quimeras,Teu vão amor de ti mesma,Essa pêndula gelada Que chamavas coração,Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada Me conseguissem prender;Foram baldados tentames,Saiu contra ti o azar,E embora pouca, perdeste A glória de me arrastar
Ao teu carro...Vãs quimeras!Para eu amar-te devias Outra ser e não como eras...

9. EPITÁFIO DO MÉXICO

 (1862)

Caminhante, vai dizer aos Lacedemônios que estamos
aqui deitados por termos defendido as suas leis.
 EPITÁFIO DAS TERMÓPILAS


Dobra o joelho: — é um túmulo
Em baixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.

Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça,
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.

Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.

E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.
Epitáfio do México, de Machado de Assis.


Machado de Assis
Crisálidas


10. POLÔNIA6

 (1862)

E ao terceiro dia a alma deve voltar ao corpo,
e a nação ressuscitará.
MICKIEWICZ – LIVRO DA NAÇÃO POLACA.


Como aurora de um dia desejado,
Clarão suave o horizonte inunda.
É talvez amanhã. A noite amarga
Como que chega ao termo; e o sol dos livres,
Cansado de te ouvir o inútil pranto,
Ao fim ressurge no dourado Oriente.

Eras livre, — tão livre como as águas
Do teu formoso, celebrado rio;
 A coroa dos tempos
Cingia-te a cabeça veneranda;
E a desvelada mãe, a irmã cuidosa,
 A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
À porta dos teus lares vigiava.

Eras feliz demais, demais formosa;
A sanhuda cobiça dos tiranos
Veio enlutar teus venturosos dias...
Infeliz! a medrosa liberdade
Em face dos canhões espavorida
Aos reis abandonou teu chão sagrado;
 Sobre ti, moribunda,
Viste cair os duros opressores:
Tal a gazela que percorre os campos,
 Se o caçador a fere,
Cai convulsa de dor em mortais ânsias,
 E vê no extremo arranco
 Abater-se sobre ela
Escura nuvem de famintos corvos.

Presa uma vez da ira dos tiranos,
 Os membros retalhou-te
Dos senhores a esplêndida cobiça;
Em proveito dos reis a terra livre
Foi repartida, e os filhos teus – escravos –
Viram descer um véu de luto à pátria
E apagar-se na história a glória tua.

A glória, não! – É glória o cativeiro 
Quando a cativa, como tu, não perde
A aliança de Deus, a fé que alenta,
E essa união universal e muda
Que faz comuns a dor, o ódio, a esperança.

Um dia, quando o cálix da amargura,
Mártir, até às fezes esgotaste,
Longo tremor correu as fibras tuas;
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;
Teu coração estremeceu; teus lábios
Trêmulos de ansiedade e de esperança,
Buscaram aspirar a longos tragos
A vida nova nas celestes auras.

 Então surgiu Kosciusko;
Pela mão do Senhor vinha tocado;
A fé no coração, a espada em punho,
E na ponta da espada a torva morte,
Chamou aos campos a nação caída.
De novo entre o direito e a força bruta
Empenhou-se o duelo atroz e infausto
 Que a triste humanidade
Inda verá por séculos futuros.
Foi longa a luta; os filhos dessa terra
Ah! não pouparam nem valor nem sangue!
A mãe via partir sem pranto os filhos,
A irmã o irmão, a esposa o esposo,
 E todas abençoavam
A heróica legião que ia à conquista
 Do grande livramento.

 Coube às hostes da força
 Da pugna o alto prêmio;
 A opressão jubilosa
Cantou essa vitória da ignomínia;
E de novo, ó cativa, o véu de luto
Correu sobre teu rosto!
 Deus continha
Em suas mãos o sol da liberdade,
E inda não quis que nesse dia infausto
Teu macerado corpo alumiasse.

Resignada à dor e ao infortúnio,
A mesma fé, o mesmo amor ardente
 Davam-te a antiga força.
Triste viúva, o templo abriu-te as portas; 
Foi a hora dos hinos e das preces;
Cantaste a Deus; tua alma consolada
Nas asas da oração aos céus subia,
Como a refugiar-se e a refazer-se
 No seio do infinito.
E quando a força do feroz cossaco
À casa do Senhor ia buscar-te,
 Era ainda rezando
Que te arrastavas pelo chão da igreja.

Pobre nação! – é longo o teu martírio;
A tua dor pede vingança e termo;
Muito hás vertido em lágrimas e sangue;
É propícia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
 Não ama a liberdade
Quem não chora contigo as dores tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua ressurreição, finada heróica! 

Machado de Assis
Crisálidas
Polônia, de Machado de Assis.


Notas do Autor
Eras livre, tão livre como as águas
 Do teu formoso, celebrado rio.
 O rio a que aludem os versos é o Niemen. É um dos rios mais cantados pelos poetas polacos. Há um soneto
de Mickiewicz ao Niemen, que me agradou muito, apesar da prosa francesa em que o li, e do qual escreve um crítico
polaco: “ Há nesta página uma cantilena a que não resiste nenhum ouvido eslavo; foi posta em música pelo célebre
Kurpinski. Assim consagrado, o soneto de Niemen correu toda a Polônia, e só deixará de viver quando deixarem de
correr as águas daquele rio.”
 Foi a hora dos hinos e das preces.
 Alude às cenas da Varsóvia, em que este admirável povo ia aos templos cantar ladainhas sobre a música
dos hinos nacionais, a despeito da invasão da tropa armada nas igrejas. É sabido que por esse motivo se fecharam os templos. 


11. AS ONDINAS

(NOTURNO DE H. HEINE)


Beijam as ondas a deserta praia;
Cai do luar a luz serena e pura;
Cavaleiro na areia reclinado
Sonha em hora de amor e de ventura.

As ondinas, em nívea gaze envoltas,
Deixam do vasto mar o seio enorme;
Tímidas vão, acercam-se do moço,
Olham-se e entre si murmuram: “Dorme!”

Uma – mulher enfim – curiosa palpa
De seu penacho a pluma flutuante;
Outra procura decifrar o mote
Que traz escrito o escudo rutilante.

Esta, risonha, olhos de vivo fogo,
Tira-lhe a espada límpida e lustrosa,
E apoiando-se nela, a contemplá-la
Perde-se toda em êxtase amorosa.

Fita-lhe aquela namorados olhos,
E após girar-lhe em torno embriagada,
Diz: “Que formoso estás, ó flor da guerra,
Quanto te eu dera por te ser amada!”

Uma, tomando a mão ao cavaleiro,
Um beijo imprime-lhe; outra, duvidosa,
Audaz por fim, a boca adormecida
Casa num beijo à boca desejosa.

Faz-se de sonso o jovem; caladinho
Finge do sono o plácido desmaio,
E deixa-se beijar pelas ondinas
Da branca lua ao doce e brando raio. 

Machado de Assis
Crisálidas

12. VISIO

 ( 1864)
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam...
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam...

Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...

Depois... depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.

E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
És outra – calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não vê se a imagem presente
Foi a visão do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes 
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes;
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.

Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida 

Machado de Assis
Crisálidas


13. FÉ

 (1863)

Mueve-me*
 enfin tu amor de tal manera
Que aunque no hubiera cielo yo te amara.
 SANTA THEREZA DE JESUS

 As orações dos homens
Subam eternamente aos teus ouvidos;
Eternamente aos teus ouvidos soem
 Os cânticos da terra.

    No turvo mar da vida,
Onde aos parcéis do crime a alma naufraga,
A derradeira bússola nos seja,
    Senhor, tua palavra.

   A melhor segurança
Da nossa íntima paz, Senhor, é esta;
Esta a luz que há de abrir à estância eterna
   O fulgido caminho.

   Ah ! feliz o que pode,
No extremo adeus às cousas deste mundo,
Quando a alma, despida de vaidade,
   Vê quanto vale a terra;

   Quando das glórias frias
Que o tempo dá e o mesmo tempo some,
Despida já, — os olhos moribundos
   Volta às eternas glórias;

   Feliz o que nos lábios,
No coração, na mente põe teu nome,
E só por ele cuida entrar cantando
   No seio do infinito.

*
 Conforme o original, embora a grafia correta devesse ser mueveme

Machado de Assis
Crisálidas


14. STELLA

 (1862)

 Ouvre ton aile et pars...
 Th. Gauthier

Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.

Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.

À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.

Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.

Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o úmido seio?

Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.

Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera
Em lágrimas a pares,

Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,

De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.

A virgem da manhã
Já todo o céu domina...
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã. 

Machado de Assis
Crisálidas


15. A CARIDADE (1861)


Ela tinha* no rosto uma expressão tão calma
Como o sono inocente e primeiro de uma alma
Donde não se afastou ainda o olhar de Deus;
Uma serena graça, uma graça dos céus**,
Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar,
E nas asas da brisa iam-lhe a ondear
Sobre o gracioso colo as delicadas tranças.

Levava pela mão duas gentis crianças.

Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto.
Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto
Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada
À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada
A infância lacrimosa, a infância desvalida,
Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida.

E tu, ó Caridade, ó virgem do Senhor,
No amoroso seio as crianças tomaste,
E entre beijos – só teus — o pranto lhes secaste
Dando-lhes leito e pão, guarida e amor*
.

*
 Note-se a cacofonia, como no original.
** Césu, no original, corrigido na errata. *
 Na errata, o verso escreve-se: Dando-lhes pão, guarida, amparo, leito e amor


Machado de Assis
Crisálidas


16. NO LIMIAR

 (1863)

Caía a tarde. Do infeliz à porta,
Onde mofino arbusto aparecia
De tronco seco e de folhagem morta,

Ele que entrava e Ela que saía
Um instante pararam; um instante
Ela escutou o que Ele lhe dizia;

— “Que fizeste? Teu gesto insinuante
Que lhe ensinou ? Que fé lhe entrou no peito
Ao mago som da tua voz amante?*

“Quando lhe ia o temporal desfeito
De que raio de sol o mantiveste?
E de que flores lhe forraste o leito?”—

Ela, volvendo o olhar brando e celeste,
Disse: — “Varre-lhe a alma desolada,
Que nem um ramo, uma só flor lhe reste!

“Torna-lhe, em vez da paz abençoada,
Uma vida de dor e de miséria,
Uma morte contínua e angustiada.

“Essa é a tua missão torva e funérea.
Eu procurei no lar do infortunado
Dos meus olhos verter-lhe a luz etérea.

“Busquei fazer-lhe um leito semeado
De rosas festivais, onde tivesse
Um sono sem tortura nem cuidado.

“E porque o céu que mais se lhe enegrece,
Tivesse algum reflexo de ventura
Onde o cansado olhar espairecesse,

“Uma réstia de luz suave e pura
Fiz-lhe descer à erma fantasia,
De mel ungi-lhe o cálix** da amargura.

“Foi tudo vão, -- foi tudo vã porfia,
A ventura não veio. A tua hora
Chega na hora que termina o dia.*

“Entra” — E o virgíneo rosto que descora
Nas mãos esconde. Nuvens que correram
Cobrem o céu que o sol já mal colora.

Ambos, com um olhar se compreenderam.
Um penetrou no lar com passo ufano;
Outra tomou por um desvio. Eram:
Ela a Esperança, Ele o Desengano. 

Machado de Assis
Crisálidas
*
 No original, as aspas não fecham.
** Foi mantida a forma arcaica em razão da métrica.
*
 No original, as aspas não fecham. 


17. MUSA CONSOLATRIX

(1864)

Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
 Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.

 Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
 Enchem, povoam tudo
De íntima paz, de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
 Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
 À enchente das angústias;
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.

 Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
 Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
 Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, — e terá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro! 

MUSA CONSOLATRIX, de Machado de Assis



Machado de Assis
Crisálidas



18 VERSOS A CORINA

 Tacendo il nome di questa gentilissima.
 DANTE
(1864) 



I
Car la beauté tue
 Qui l’a vue,
Elle enivre et tue.
 A. Briseux
Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a fórma  peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!

De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.

Minha alma adivinhou a origem do teu ser:
Quis cantar e sentir; quis amar e viver;
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande, elevado, abriam-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção.

Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
Era assim: fronte altiva e gesto soberano,
Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano,
Em olhos senhoris uma luz tão serena,
E grave como Juno, e bela como Helena!
Era assim, a mulher que extasia e domina,
A mulher que reúne a terra e o céu: Corina!

Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor.

Viver, — fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas – uma essência,
Apagar outras lembranças,
Perder outras ilusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a única ventura
Não reside em outra vida,
Não vem de outra criatura;
Confundir olhos nos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lágrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver...
Tal era a minha ambição.

Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flor pura?
Em que solitária fonte
Esta água iria beber?
Em que encendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrela,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti: — em ti que és bela,
Em ti que a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na ilusão de que deliras,
Em ti, que um ósculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus dias,
De vida e de juventude...

Amemos! diz a flor à brisa peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando em torno à flor;
Cantemos esta lei e vivamos, Corina,
De uma fusão do ser, de uma efusão do amor



II


Mon pauvre coeur, reprends ton sublime courage
Et me chantes ta joie et ton déchirement.
A. Houssaye.
A minha alma, talvez, não é tão pura,
Como era pura nos primeiros dias;
Eu sei: tive choradas agonias
De que conservo alguma nódoa escura,

Talvez. Apenas à manhã da vida
Abri meus olhos virgens e minha alma,
Nunca mais respirei a paz e a calma,
E me perdi na porfiosa lida.

Não sei que fogo interno me impelia
À conquista da luz, do amor, do gozo,
Não sei que movimento imperioso
De um desusado ardor minha alma enchia.

Corri de campo em campo e plaga em plaga.
(Tanta ansiedade o coração encerra!)
A ver o lírio que brotasse a terra,
A ver a escuma que cuspisse – a vaga.

Mas, no areal da praia, no horto agreste,
Tudo aos meus olhos ávidos fugia...
Desci ao chão do vale que se abria,
Subi ao cume da montanha alpestre.

Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de poeta;
E contemplei, nesta ambição inquieta,
Da muda noite a página sublime.

Tomei nas mãos a cítara saudosa,
E soltei entre lágrimas um canto...
A terra brava recebeu meu pranto
E o eco repetiu-me a voz chorosa.

Foi em vão. Como um lânguido suspiro,
A voz se me calou, e do ínvio monte
Olhei ainda as linhas do horizonte,
Como se olhasse o último retiro.

Nuvem negra e veloz corria solta
O anjo da tempestade anunciando;
Vi ao longe as alcíones cantando
Doidas correndo à flor da água revolta.

Desiludido, exausto, ermo, perdido,
Busquei a triste estância do abandono,
E esperei, aguardando o último sono,
Volver à terra, de que foi nascido.

— “Ó Cibele fecunda, é no remanso
Do teu seio – que vive a criatura;
Chamem-te outros morada triste e escura,
Chamo-te glória, chamo-te descanso!”

Assim falei. E murmurando aos ventos
Uma blasfêmia atroz – estreito abraço
Homem e terra uniu, e em longo espaço
Aos ecos repeti meus vãos lamentos.

Mas, tu passaste... Houve um grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpétuo gozo
Perpassava e me atraía,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da beleza
Que das escumas nasceu...
Eras tu, maga visão
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés sangrei!

Mas se minha alma, acaso, é menos pura
Do que era pura nos primeiros dias,
Porque não soube em tantas agonias
Abençoar a minha desventura;

Se a blasfêmia os meus lábios poluíra,
Quando, depois do tempo e do cansaço,
Beijei a terra no mortal abraço
E espedacei desanimado a lira;

Podes, visão formosa e peregrina,
No amor profundo, na existência calma,
Desse passado resgatar minha alma
E levantar-me aos olhos teus, — Corina!



III
Se tu pudesses viver um dia na minha alma...
feliz criatura, tu saberias o que é sofrer!
MICKIEWICZ .— Sonetos da Criméia


Quando voarem minhas esperanças,
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;

E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu da minha primavera;

E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da beleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;

Quando assim seja, por teus olhos juro,
Voto minha alma à escura soledade,
Sem procurar melhor felicidade,
E sem ambicionar prazer mais puro.

Como o viajor que, de falaz miragem
Volta desenganado ao lar tranqüilo,
E procura, naquele último asilo,
Nem evocar memórias da viagem;

Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados
A tudo mais, — a minha fantasia
As asas colherá com que algum dia
Quis alcançar os cimos elevados.

És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?

Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, é a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;*
Outra não há melhor.
 Se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.

Ah! faze que estas ilusões tão vivas
Nunca se tornem pálidas lembranças;
E nem voem as minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas!




IV
Ne vois-tu pas ?
A.M.
Tu que és bela e feliz, tu que tens por diadema
A dupla irradiação da beleza e do amor;
E sabes reunir, como o melhor poema,
Um desejo da terra e um toque do Senhor;

Tu, criação feliz de um dia de pureza,
Em que a terra não teve um só pecado, irmã
Das visões que sonhou no culto da beleza
A musa de Petrarca e o pincel de Rembrant;

Tu que, como a ilusão, entre névoas deslizas
Aos versos do poeta um desvelado olhar,
Corina, ouve a canção das amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas e do mar.

 AS BRISAS

Deu-nos a harpa eólia a excelsa melodia
Que a folhagem desperta e torna alegre a flor,
Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,
Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?

Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?
Que alma de serafim volteia aos lábios teus?
Donde houveste o segredo e o poderoso encanto
Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?

 A LUZ

Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento à viva criação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vai meu vívido clarão.

Mas se derramo vida a Cibele fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda,
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.

 AS ÁGUAS

Do nume da beleza o berço celebrado
Foi o mar. Vênus bela entre espumas nasceu.
Veio a idade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou: — pereceu.

Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha,
Tens a inefável graça e o inefável ardor.
Se paras, és um nume; andas, uma rainha,
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor!

Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga
A vaga, a tua mãe, que te abre os seios nus,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga,
E das regiões da névoa às regiões da luz!

 AS SELVAS

Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão;
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endimião.

Da grande caçadora a um solícito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o eco repete a flauta de Sileno,
Após o grande ruído a mudez sepulcral.

Mas Diana aparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É a vida que renasce, é vida que se agita;
À luz do teu olhar, ao som da tua voz!

 O POETA

Também eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solene mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O último suspiro e a última oração;

Também eu junto a voz à voz da natureza,
E soltando o meu hino ardente e triunfal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza
E banharei minha alma em tua luz, — Ideal!

Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cântico das águas,
Não procures, Corina, o caminho do mar!



V
Povero mio core! Ecco una separazione di piú nella
mia scigurata vita!
SILVIO PELLICO

Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.

Único em meio das paixões vulgares,
Fui a teus pés queimar minha alma ansiosa,
Como se queima o óleo ante os altares;
Tive a paixão indômita e fogosa,
Única em meio das paixões vulgares.

Cheio de amor, vazio de esperança,
Dei para ti os meus primeiros passos;
Minha ilusão fez-me, talvez, criança;
E eu pretendi dormir aos teus abraços,
Cheio de amor, vazio de esperança.

Refugiado à sombra do mistério
Pude cantar meu hino doloroso;
E o mundo ouviu o som doce ou funéreo
Sem conhecer o coração ansioso
Refugiado à sombra do mistério.

Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Vejo que em teus olhares de princesa
Transluz uma alma ardente e compassiva
Capaz de reanimar minha incerteza;
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?

Como um réu indefeso e abandonado,
Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
E se a perseguição me tem cansado,
Embora, escutarei o teu aresto
Como um réu indefeso e abandonado.

Embora fujas aos meus olhos tristes,
Minha alma irá saudosa, enamorada,
Acercar-se de ti lá onde existes;
Ouvirás minha lira apaixonada,
Embora fujas aos meus olhos tristes.

Talvez um dia meu amor se extinga,
Como fogo de Vesta mal cuidado
Que sem o zelo da Vestal não vinga:
Na ausência e no silêncio condenado
Talvez um dia meu amor se extinga.

Então não busques reavivar a chama;
Evoca apenas a lembrança casta
Do fundo amor daquele que não ama;
Esta consolação apenas basta;
Então não busques reavivar a chama.

Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alívio à minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um eco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.


VI
O amor tem asas, mas ele também pode dálas.

 HOMERO
Em vão! Contrário a amor é nulo o esforço humano;
É nulo o vasto espaço, é nulo o vasto oceano.
Solta do chão, abrindo as asas luminosas,
Minha alma se ergue e voa às regiões venturosas,
Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina,
Reveste a natureza a púrpura divina!

Lá, como quando volta a primavera em flor,
Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;
Ao influxo celeste e doce da beleza,
Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
Mais lânguida e mais bela a tarde pensativa
Desce do monte ao vale; e a viração lasciva
Vai despertar à noite a melodia estranha
Que falam entre si os olmos da montanha;
A flor tem mais perfume e a noite mais poesia;
O mar tem novos sons e mais viva ardentia;
A onda enamorada arfa e beija as areias,
Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!

O esplendor da beleza é raio criador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.
Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida,
Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida
Da saudade que punge e do amor que lacera,
E palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
Respirando, como eu, a saudade e a tristeza;
A saudade do bem e a tristeza do mal;
Tristeza sem irmã, saudade sem igual.

É deste ermo que eu vou, alma desventurada,
Murmurar junto a ti a estrofe imaculada
Do amor que não perdeu, co’a última esperança,
Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.

Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
Do meu sombrio céu alva estrela bem-vinda!
Como divaga a abelha inquieta e sequiosa
Do cálice do lírio ao cálice da rosa,
Divaguei de alma em alma em busca deste amor;
Gota de mel divino, era divina a flor
Que o devia conter. Eras tu.

 No delírio
De te amar – olvidei as lutas e o martírio;
Eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma; 
De outras belezas vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: — tinhas a alma e o amor.

Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minha alma. Na provança
Ela não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte
Tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro.

Deste profundo amor, doce e amada Corina,
Acorda-te a lembrança um eco de aflição?
Minha alma pena e chora à dor que a desatina:
Sente tua alma acaso a mesma comoção?

Em vão! Contrário a amor é nulo o esforço humano,
É nulo o vasto espaço, é nulo o vasto oceano!

Vou, sequioso espírito,
Cobrando novo alento,
Na asa veloz do vento
Correr de mar em mar;
Posso, fugindo ao cárcere,
Que à terra me tem preso,
Em novo ardor aceso,
Voar, voar, voar!

Então, se à hora lânguida
Da tarde que declina,
Do arbusto da colina
Beijando a folha e a flor,
A brisa melancólica
Levar-te entre perfumes
Uns tímidos queixumes
Ecos de mágoa e dor;

Então, se o arroio tímido
Que arrasta-se e murmura
À sombra da espessura
Dos verdes salgueirais,
Mandar-te entre os murmúrios
Que solta nos seus giros,
Uns como que suspiros
De amor, uns ternos ais;

Então, se no silêncio
Da noite adormecida,
Sentires – mal dormida –
Em sonho ou em visão,
Um beijo em tuas pálpebras,
Um nome aos teus ouvidos,
E ao som de uns ais partidos
Pulsar teu coração;

Da mágoa que consome
O meu amor venceu;
Não tremas – é teu nome,
Não fujas – que sou eu! –


FIM DOS VERSOS A CORINA
Machado de Assis - Crisálida

19. OS ARLEQUINS 5

SÁTIRA

(1864)

 Que deviendras dans l’éternité l’âme d’un

 homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?

 M.ME DE STAEL

 Musa, depõe a lira!

Cantos de amor, cantos de glória esquece!

 Novo assunto aparece

Que o gênio move e a indignação inspira.

 Esta esfera é mais vasta,

E vence a letra nova a letra antiga!

 Musa, toma a vergasta,

 E os arlequins fustiga!

 Como aos olhos de Roma,

— Cadáver do que foi, pávido império

 De Caio e de Tibério, —

O filho de Agripina ousado assoma;

 E a lira sobraçando,

Ante o povo idiota e amedrontado,

 Pedia, ameaçando,

 O aplauso acostumado;

 E o povo que beijava

Outrora ao deus Calígula o vestido,

 De novo submetido

Ao régio saltimbanco o aplauso dava.

 E tu, tu não te abrias,

Ó céu de Roma, à cena degradante!

 E tu, tu não caías,

 Ó raio chamejante!

 Tal na história que passa

Neste de luzes século famoso,

 O engenho portentoso

Sabe iludir a néscia populaça;

 Não busca o mal tecido

Canto de outrora; a moderna insolência

 Não encanta o ouvido,

 Fascina a consciência!

 Vede; o aspecto vistoso,

O olhar seguro, altivo e penetrante,

 E certo ar arrogante

Que impõe com aparências de assombroso;

 Não vacila, não tomba, 

Caminha sobre a corda firme e alerta:

 Tem consigo a maromba

 E a ovação é certa.

 Tamanha gentileza,

Tal segurança, ostentação tão grande,

 A multidão expande

Com ares de legítima grandeza.

 O gosto pervertido

Acha o sublime neste abatimento,

 E dá-lhe agradecido

 O louro e o monumento.

 Do saber, da virtude,

Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,

 Um manto de retalhos

Que a consciência universal ilude.

 Não cora, não se peja

Do papel, nem da máscara indecente,

 E ainda inspira inveja

 Esta glória insolente!

 Não são contrastes novos;

Já vem de longe; e de remotos dias

 Tornam em cinzas frias

O amor da pátria e as ilusões dos povos.

 Torpe ambição sem peias

De mocidade em mocidade corre,

 E o culto das idéias

 Treme, convulsa e morre.

 Que sonho apetecido

Leva o ânimo vil a tais empresas?

 O sonho das baixezas:

Um fumo que se esvai e um vão ruído;

 Uma sombra ilusória

Que a turba adora ignorante e rude;

 E a esta infausta glória

 Imola-se a virtude.

 A tão estranha liça

Chega a hora por fim do encerramento,

 E lá soa o momento

Em que reluz a espada da justiça.

 Então, musa da história,

Abres o grande livro, e sem detença

 À envilecida glória

 Fulminas a sentença. 


Machado de Assis Crisálidas

20. A ELA

Quem és tu que me atormentas
Com teus prazenteiros sorrisos?
Quem és tu que me apontas
As portas dos paraísos?
Imagem do céu és tu?
És filha da divindade?
Ou vens prender em teus cabelos
A minha liberdade?
“Vê V. Exa., Sr. presidente, que nesse tempo, o nobre deputado era inimigo de todas as leis
opressoras. A assembléia tem visto como ele trata as leis do metro.”
Todo o resto do discurso foi assim. A minoria protestou. Luís Tinoco fez-se de todas as cores, e a
sessão acabou em risada. No dia seguinte os jornais amigos de Luís Tinoco agradeceram ao
adversário deste o triunfo que lhe proporcionou mostrando à província “uma antiga e brilhante face do
talento do ilustre deputado”. Os que indecorosamente riram dos versos, foram condenados com estas
poucas linhas: “Há dias um deputado governista disse que a situação era uma caravana de homens
honestos e bons. É caravana, não há dúvida; vimos ontem os seus camelos”.
Nem por isso, Luís Tinoco ficou mais consolado. As cartas ao Dr. Lemos começaram a escassear, até
que de todo cessaram de aparecer. Decorreram assim silenciosos uns três anos, ao cabo dos quais o
Dr. Lemos foi nomeado não sei para que cargo na província onde se achava Luís Tinoco. Partiu.
Apenas empossado do cargo, tratou de procurar o ex-poeta, e pouco tempo gastou recebendo logo um
convite dele para ir a um estabelecimento rural onde se achava.
– Há de me chamar ingrato, não? disse Luís Tinoco, apenas viu assomar à porta de casa o
Dr. Lemos. Mas não sou; contava ir vê-lo daqui a um ano; e se lhe não escrevi... Mas que tem doutor?
está espantado?
O Dr. Lemos estava efetivamente pasmado a olhar para a figura de Luís Tinoco. Era aquele o poeta
dos Goivos e Camélias, o eloqüente deputado, o fogoso publicista? O que ele tinha diante de si era um
honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem o menor vestígio das atitudes melancólicas do
poeta, do gesto arrebatado do trbuno, - uma transformação, uma criatura muito outra e muito melhor.
Riram-se ambos, um da mudança, outro do espanto, pedindo o Dr. Lemos a Luís Tinoco lhe dissesse
se era certo haver deixado a política, ou se aquilo eram apenas umas férias para renovar a alma.
– Tudo lhe explicarei, doutor, mas há de ser depois de ter examinado a minha casa e
minha roça, depois de lhe apresentar minha mulher e meus filhos...
– Casado?
– Há vinte meses.
– E não me disse nada!
– Ia este ano à corte e esperava surpreendê-lo... Que duas criancinhas as minhas... lindas
como dois anjos. Saem à mãe, que é a flor da província. Oxalá pareçam também com ela nas
qualidades de dona de casa; que atividade! que economia!...
Feita a apresentação, beijadas as crianças, examinado tudo, Luís Tinoco declarou ao Dr. Lemos que
definitivamente deixara a política.
– De vez?
– De vez.
– Mas que motivo? desgostos, naturalmente.
– Não; descobri que não era fadado para grandes destinos. Um dia leram-me na
assembléia alguns versos meus. Reconheci então quanto eram pífios os tais versos; e podendo vir
mais tarde a olhar com a mesma lástima e igual arrependimento para as minhas obras políticas,
arrepiei carreira e deixei a vida pública. Uma noite de reflexão e nada mais.
– Pois teve ânimo?...
– Tive, meu amigo, tive ânimo de pisar terreno sólido, em vez de patinhar nas ilusões dos
primeiros dias. Eu era um ridículo poeta e talvez ainda mais ridículo orador. Minha vocação era esta.
Com poucos anos mais estou rico. Ande agora beber o café que nos espera e feche a boca, que as

moscas andam no ar.

20 Poemas de Machado de Assis | Literatura Clássica em Série



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Quem foi Machado de Assis?


Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores um dos maiores senão o maior nome da literatura do Brasil (Wikipedia)



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João 3 16 Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.